Entenda por que o júri da Boate Kiss foi anulado: Uma análise técnica
Desde o trágico incêndio ocorrido na Boate Kiss, em Santa Maria/RS, em 2013, que resultou na perda de 242 vidas, a busca por justiça tem sido uma constante. Entretanto, uma reviravolta recente no caso deixou muitas pessoas perplexas: a anulação do júri popular que condenou os réus. Neste artigo, vamos esclarecer, do ponto de vista técnico, por que o júri da Boate Kiss foi anulado.
O Fundamento da anulação: Nulidades do processo
Após o término do julgamento popular ocorrido em dezembro de 2021, as defesas dos acusados interpuseram recursos alegando uma série de nulidades processuais ocorridas no júri. As nulidades se referem a questões ligadas ao andamento e a procedimentos formais que devem ser respeitados durante a sessão de julgamento e não são referentes ao mérito do processo. Portanto, foram reconhecidas diversas falhas procedimentais que levaram a anulação do júri, conforme será explicado.
Sorteio dos jurados
O chamado “júri popular” é julgado por 7 (sete) pessoas comuns do povo, denominadas jurados. Estes jurados são sorteados para participarem da solenidade. No júri da Boate Kiss, foram três sorteios, sendo que o último ocorreu faltando apenas quatro dias úteis para o julgamento, o que violou diretamente o Código de Processo Penal, que exige a realização de sorteio em no máximo 10 (dez) dias úteis antes da sessão. Fazer o sorteio muito próximo à data do júri impede a atuação da defesa, uma vez que não é possível analisar os nomes dos sorteados e verificar se estariam impedidos de julgar. Dessa forma, esta foi reconhecida como uma das nulidades ocorridas, tendo em vista que não foi respeitado o prazo mínimo.
Conversa reservada
Em desconforme ao procedimento descrito na lei, o juiz presidente do julgamento teve uma reunião reservada com os jurados. Esta conversa ocorreu no decorrer da fala da defesa em que, em determinado momento, o juiz levou os jurados para uma sala, a fim de conversarem. Não há permissão legal para essa atitude do Magistrado. Nem a defesa, nem o Ministério Público participaram desta reunião e sequer puderam ter acesso ao que foi dito. Diante disso, foi considerada uma causa de nulidade absoluta do julgamento.
Inovação trazida pelo Ministério Público
Para que os réus possam ser submetidos ao júri, o juiz precisa dar uma decisão, chamada de “sentença de pronúncia”. Esta decisão indica que os acusados serão submetidos ao julgamento popular e também delimita a acusação, sendo que a defesa poderá “se defender” apenas dos fatos que estiverem contidos nesta decisão.
Desta forma, o Ministério Público fica restrito a decisão de pronúncia e não pode inovar nas suas alegações, o que ocorreu neste caso quando a acusação, no momento dos debates, mencionou a teoria da cegueira deliberada, desrespeitando o que estava na sentença de pronúncia. Esta inovação trazida pelo Ministério Público, viola o princípio da plenitude de defesa e também é causa de nulidade.
Leia mais
Entenda a revelia e suas consequências no processo cível
Violência doméstica: entenda como funciona a medida protetiva
Quesitos incompreensíveis
Mais uma vez, os limites da decisão de pronúncia foram ultrapassados. Desta vez, quanto aos quesitos. Os quesitos são as perguntas que o Juiz faz aos jurados, ao final do júri, para verificar se os réus serão condenados, absolvidos, ou se reconhecem causas de aumento e diminuição de pena. No caso do júri da Boate Kiss, a forma como os quesitos foram escritos, dificultou a compreensão dos jurados e desrespeitou a sentença de pronúncia. O quesito em si, foi relativo ao dolo eventual. A redação descreveu condutas que já haviam sido afastadas anteriormente no processo. Ainda, a escrita estava extremamente complexa, levando-se em consideração que os jurados são pessoas leigas. Sendo assim, uma decisão adequada pode ter sido prejudicada pela incompreensão dos quesitos, motivo pelo qual foi constatada a violação do princípio da correlação, declarando-se a nulidade.
Violação do tempo mínimo para juntada de provas
A lei prevê que todas as provas que serão apresentadas no dia do júri, devem ser juntadas em até 3 (três) dias antes do julgamento, para que as partes possam acessar e estudar a prova em tempo hábil e preparar-se para a atuação em plenário. Ocorre que, o Ministério Público juntou uma “maquete virtual” da Boate Kiss, exatamente 3 (três) dias úteis antes do julgamento, teoricamente, respeitando o prazo legal. Contudo, o programa da maquete era de imensa complexibilidade, o que tornava completamente inacessível, exigindo uma qualidade de hardware inalcançável para as defesas, que se utilizam de meios normais de computadores. Esta maquete constitui uma prova supressa, uma vez que, seu acesso era completamente inviável no prazo juntado. Sendo assim, erroneamente a prova não foi afastada pelo juiz, que permitiu sua utilização no dia do julgamento, mesmo sem a defesa ter tido acesso a ele, causando grave violação e constituindo mais uma nulidade.
A importância do respeito à norma penal
A lei penal e processual penal são cruciais para garantir que um julgamento seja justo e equitativo. A anulação do júri da Boate Kiss, embora possa ser decepcionante para algumas pessoas, é um reflexo do compromisso do sistema de justiça em assegurar que cada indivíduo tenha um julgamento imparcial e justo. Isso não implica automaticamente que os réus sejam inocentes, mas sim que o processo legal deve seguir as regras e garantir que todas as partes tenham igualdade de condições.
O que acontecerá em seguida?
Com a anulação do júri, o caso da Boate Kiss terá que passar por um novo julgamento. Isso significa que um novo grupo de jurados será selecionado e que será realizado novamente o julgamento. As provas e os argumentos serão novamente apresentados e um novo veredicto será proferido. A visibilidade e complexidade do processo não pode servir como justificativa permissiva para a violação dos direitos e garantias. O júri é uma garantia do cidadão. A minimização de erros judiciais garante um julgamento justo, o que se dá respeitando-se as regras processuais. É importante que todos nós entendamos que, embora o processo judicial possa ser demorado, é fundamental para alcançar uma justiça verdadeira e justa. A anulação do júri não impede que os responsáveis sejam responsabilizados, mas garante que isso seja feito dentro dos estritos limites da lei.
Em conclusão, a anulação do júri da Boate Kiss foi baseada na necessidade de seguir os procedimentos legais, sem entrar no mérito. Embora seja um passo que pode parecer frustrante, é um lembrete de que a justiça deve ser alcançada dentro dos padrões legais estabelecidos. A lei deve ser aplicada igual para todos. O novo julgamento permitirá uma oportunidade para que as partes envolvidas apresentem seus argumentos perante um júri imparcial, buscando um desfecho justo para esta tragédia.
Quer receber conteúdos no seu WhatsApp semanalmente? Clique aqui!